Testosterona total, SHBG e testosterona livre: quando pedir e como interpretar

Entenda quando dosar testosterona total e livre, como o SHBG altera a leitura, por que a estimativa por fórmulas (Vermeulen) é preferida ao ensaio direto e quais cuidados pré-analíticos tomar.

HORMÔNIOS E VITAMINASCAMPANHA DE CORES

Ariéu Azevedo Moraes

11/10/20257 min ler

Representação da molécula de testosterona
Representação da molécula de testosterona

Testosterona total, SHBG e testosterona livre: guia prático para clínica e laboratório

A testosterona livre é a fração biologicamente ativa do hormônio. Em homens com valores limítrofes de testosterona total ou alteração de SHBG, recomenda-se obter testosterona livre por equilíbrio de diálise ou estimá-la por fórmulas (ex.: Vermeulen) — evitando os imunoensaios “análogos” diretos, considerados imprecisos.

No contexto do Novembro Azul, falar de testosterona não é rastrear câncer de próstata: é cuidar da saúde do homem de forma integral. Cansaço persistente, queda de libido, disfunção erétil, perda de massa magra, anemia inexplicada e sinais clínicos compatíveis levantam a hipótese de hipogonadismo — um diagnóstico clínico-laboratorial que exige regras claras para coleta, interpretação e confirmação. As principais diretrizes reforçam: só há diagnóstico de deficiência androgênica quando coexistem sintomas/achados clínicos e testosterona consistentemente baixa, confirmada em amostras matinais repetidas.

Este artigo organiza o que testosterona total, SHBG e testosterona livre realmente significam, quando pedir, com que cautelas, e como transformar números em decisões — sem promessas fáceis.

Conceitos fundamentais — o que está circulando no sangue?

A testosterona circula em três “compartimentos”:

  • Ligada fortemente à SHBG (Sex Hormone-Binding Globulin): alta afinidade; não acessível aos receptores.

  • Ligada fracamente à albumina: baixa afinidade; dissociável na interface tecidual.

  • Livre: 1–3% do total, biologicamente ativa (entra na célula e se liga ao receptor). Em termos didáticos, livre + ligada à albumina é a fração biodisponível.

Estudos clássicos descrevem que, em homens, parte relevante da testosterona circula atrelada à albumina e à SHBG, e é justamente a variação da SHBG que frequentemente confunde a interpretação da testosterona total.

Tradução prática: um homem pode ter testosterona total “normal”, mas SHBG elevada, resultando em testosterona livre reduzida (sintomas compatíveis). O contrário também acontece: SHBG baixa (obesidade, resistência insulínica) “eleva” a fração livre relativa, mascarando o cenário real se olharmos só o total.

Quando pedir testosterona total — e por que repetir?

Indicação: homens com sinais/sintomas compatíveis com hipogonadismo.
Coleta: matinal (pico circadiano), de preferência em jejum; repetir a dosagem para confirmar valor baixo. Diretrizes da Endocrine Society e da AUA convergem nesses pontos, ressaltando amostra matinal, ensaio acurado e confirmação em segunda coleta.

Ponto de ouro: sem sintomas, não há diagnóstico — e não se deve rotular hipogonadismo com base em uma dosagem isolada.

SHBG: o “maestro escondido” que muda a leitura

A SHBG é uma glicoproteína hepática que amarra andrógenos e estrógenos no plasma. O que a sobe ou desce?

  • Aumenta: estrógenos (p. ex., terapia estrogênica), hipertireoidismo, perda de peso/baixo IMC, doenças hepáticas e alguns fármacos.

  • Diminui: andrógenos, obesidade, resistência insulínica, hipotireoidismo, síndrome metabólica.

Por que isso importa? Porque a testosterona total pode parecer normal (ou baixa) apenas por efeito da SHBG — e a conduta muda quando calculamos/medimos a fração livre. Em homens com TT limítrofe ou alterações de SHBG, as diretrizes recomendam avaliar testosterona livre (por equilíbrio de diálise, quando disponível, ou por estimativa validada).

Testosterona livre: medir como?

Existem três caminhos:

  1. Equilíbrio de diálise (padrão-ouro laboratorial): excelente, mas caro e pouco disponível.

  2. Imunoensaio “análogo” de testosterona livre (aFT): rápido, porém desaconselhado por imprecisão e má correlaçãonão usar para decisão clínica.

  3. Cálculo/estimativa (ex.: Vermeulen): usa TT, SHBG e albumina + constantes de afinidade para estimar FT; é recomendado pelas diretrizes quando não há diálise.

O estudo-chave: Vermeulen et al., 1999 (JCEM) comparou métodos simples de estimar FT e demonstrou excelente correlação com medidas por referência, consolidando o cálculo como alternativa robusta na prática.

Como funciona o cálculo de Vermeulen (e por que a albumina entra na conta)

A fórmula assume equilíbrio de ligação entre testosterona e SHBG/albumina usando constantes de afinidade para resolver a fração livre. Para estimar corretamente, você precisa de:

  • Testosterona total (TT)

  • SHBG

  • Albumina (pode ser medida ou assumir um valor padrão, quando clinicamente coerente)

O uso da albumina melhora a estimativa de biodisponibilidade (livre + fracamente ligada). Diversas rotinas laboratoriais e calculadoras validadas usam Vermeulen como backbone.

Ferramenta prática: PipetaCalc – Testosterona Livre (Vermeulen). Informe TT, SHBG e albumina e obtenha a estimativa de FT em segundos — útil para consulta, aula e estudo. Acessar

Pré-analítico e variabilidade: como não tropeçar na coleta

  • Horário: colher pela manhã (maior nível). O ritmo circadiano achata com a idade, mas ainda existe.

  • Jejum: a diretriz Endocrine Society recomenda amostra matinal em jejum para reduzir variabilidade.

  • Repetição: valores limítrofes/baixos exigem segunda coleta de confirmação.

  • Doenças intercorrentes e fármacos: infecções, glicocorticoides, opióides, andrógenos/antiandrógenos, alterações tireoidianas e hepáticas podem mudar TT e/ou SHBG.

  • Perda de peso/obesidade: reduz SHBG e pode alterar TT/FT na interpretação.

Frase que ajuda no laudo:
“Coletar pela manhã, preferencialmente em jejum. Confirmar valores baixos em segunda amostra. Considerar condições que alteram a SHBG (obesidade, disfunções tireoidianas, hepatopatias, estrógenos/andrógenos).”

Quando pedir testosterona livre (além do total)?

  • TT próximo ao limite inferior, com sintomas compatíveis.

  • Evidência clínica/laboratorial de alteração de SHBG (obesidade, hipertireoidismo/hipotireoidismo, hepáticas, medicações).

  • Discordância entre quadro clínico e TT “normal”. Nesses cenários, equilíbrio de diálise (se houver) ou fórmulas (Vermeulen) são preferíveis; evitar imunoensaio aFT.

E o “Free Androgen Index” (FAI)? Por que não usar isoladamente

O FAI (TT/SHBG × 100) é um atalho histórico, mas tem limitações importantes e não substitui estimativas modernas (Vermeulen) nem o padrão-ouro. Ele não modela a ligação à albumina e pode enganar em extremos de SHBG. Priorize FT por cálculo validado ou diálise.

Algoritmo prático para o ambulatório/laboratório

  1. Suspeita clínica (sintomas + sinais) → pedir TT matinal (jejum ideal).

  2. TT baixo/limítroferepetir em dia diferente para confirmar.

  3. Se persistir baixo ou houver evidência de alteração de SHBG → pedir SHBG e calcular FT (Vermeulen) ou usar diálise (se disponível).

  4. Interpretar TT/FT no contexto clínico, comorbidades e fármacos.

  5. Decidir (compartilhado): observar, tratar causas secundárias (perda de peso, tireoide, medicações), considerar terapia conforme diretrizes e riscos.

Casos rápidos (hipotéticos) para aplicar

Caso 1 — TT “normal”, sintomas presentes, IMC 19 e hipertireoidismo em tratamento

Raciocínio: SHBG alta é provável → FT pode estar baixa.
Ação: dosar SHBG, calcular FT (Vermeulen); corrigir tireoide antes de rotular hipogonadismo.

Caso 2 — TT 290 ng/dL (limítrofe) em homem com obesidade e síndrome metabólica

Raciocínio: SHBG baixa é frequente; TT pode parecer mais baixo sem que FT esteja tão reduzida.
Ação: repetir TT matinal, medir SHBG, calcular FT; intervir no estilo de vida e comorbidades.

Caso 3 — TT 240 ng/dL em duas manhãs, sintomas significativos

Ação: confirmar FT reduzida (diálise ou Vermeulen), investigar causas secundárias e discutir tratamento conforme diretrizes.

Testosterona e próstata: o que não confundir no Novembro Azul

  • Avaliar testosterona não é rastrear câncer de próstata.

  • A decisão sobre PSA/DRE segue política pública e diretrizes urológicas (ver Artigos 1 e 2 da série).

  • Terapia com testosterona exige protocolo, monitoramento e critério; consulte diretrizes Endocrine Society/AUA e avalie risco/benefício individualmente.

Boas práticas de laudo e comunicação

  • Explicitar método (ensaio de TT), unidades e valores de referência; informar quando FT é estimada por Vermeulen.

  • Evitar a expressão “teste de triagem para próstata” no contexto de testosterona.

  • Anexar observações: “Valores de SHBG alterados e condições clínicas (obesidade, tireoide, hepatopatias, fármacos) podem modificar a interpretação de TT/FT.”

  • Educar: “Imunoensaios diretos de FT (aFT) não são recomendados para decisão clínica.”

Perguntas frequentes (FAQ) — respostas objetivas

Precisa estar em jejum?
Diretrizes sugerem amostra matinal em jejum para reduzir variabilidade e padronizar coleta.

Quantas vezes devo dosar para “fechar” o diagnóstico?
Pelo menos duas manhãs com TT baixo/limítrofe + quadro clínico compatível; considerar FT quando SHBG está alterada ou TT é limítrofe.

Posso confiar no “free T” do laboratório feito por imunoensaio direto?
Não é recomendado; prefira diálise (se houver) ou cálculo de Vermeulen.

O que muda se o paciente tem hipertireoidismo?
Tende a elevar SHBG e reduzir FT relativa; corrigir tireoide e estimar FT antes de decisões.

E se tem obesidade/resistência insulínica?
Tende a reduzir SHBG; TT pode parecer mais baixo; calcular FT ajuda a interpretar.

Integração com a série Novembro Azul

  • Contexto histórico e de políticas: veja o Artigo 1 para entender Movember/Novembro Azul e por que campanha ≠ rastreio universal.

  • Exames prostáticos (PSA, %livre, PHI, PCA3): aprofunde no Artigo 2 como somar probabilidades sem excessos.

  • Mitos e pré-analítico do PSA: no Artigo 4, você verá o que realmente altera o PSA e como orientar coleta/retorno.

Entenda que: medir certo, interpretar melhor

Em saúde do homem, testosterona exige contexto. Sem sintomas, não há diagnóstico. Sem amostra matinal repetida, não há confirmação. E, quando a SHBG sai do lugar, olhar só o total é meia história: é aí que a testosterona livre estimada (Vermeulen) ou medida por diálise faz diferença. Ao padronizar pré-analítico, evitar ensaios diretos de FT, explicitar limites e usar ferramentas confiáveis, você sai do achismo e entra na decisão compartilhada — que é onde o cuidado ganha.

Saúde do Homem, continue com esses Títulos

  • Entenda a história do Novembro Azul no Brasil e no mundo — do bigode à mudança de conversa.Artigo 1

  • Exames para próstata (PSA, relação livre/total, PHI, PCA3): como interpretar sem cair em armadilhas.Artigo 2

  • PSA sem erro: mitos, interferentes e preparo pré-analítico que mudam o resultado.Artigo 4

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Referências

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