Alho e Coagulação: Como a Alicina Pode Interferir nos Exames de Sangue e Aumentar o Risco de Sangramentos
O alho pode interferir na coagulação do sangue? Entenda como a alicina atua nas plaquetas, como pode alterar TP, INR e TTPa, e por que o consumo excessivo de alho ou suplementos exige atenção antes de exames laboratoriais e cirurgias.
ATUALIDADES
Ariéu Azevedo Moraes
12/7/20257 min ler


Quando um tempero vira interferente laboratorial
O alho faz parte da cultura alimentar e medicinal há séculos. Ele aparece nas receitas do dia a dia, em conselhos “caseiros” para o coração e até em cápsulas vendidas como fitoterápicos.
Em muitos aspectos, essa fama tem base real: o alho contém compostos sulfurados biologicamente ativos, capazes de influenciar a pressão arterial, o metabolismo lipídico e, em determinadas circunstâncias, a coagulação sanguínea.
O ponto crítico, para quem trabalha com análises clínicas, é que esses mesmos compostos podem:
modular a agregação plaquetária,
interagir com anticoagulantes,
e, em alguns casos, influir em exames de coagulação.
Por isso, entender o que é evidência científica sólida e o que ainda está no campo da hipótese ou de relatos isolados é fundamental para orientar o paciente, interpretar resultados e registrar informações importantes na ficha laboratorial.
Alicina e outros compostos: o “laboratório químico” dentro do alho
Quando o dente de alho é cortado ou esmagado, a enzima aliinase transforma aliina em alicina. A partir dela, derivam outros compostos sulfurados, como diallyl disulfide (DADS) e diallyl trisulfide (DATS), presentes principalmente em óleos e extratos de alho.
Esses compostos já foram associados a:
modulação da função plaquetária;
possível redução de tromboxano A₂ (eixo pró-coagulante);
aumento da atividade fibrinolítica (quebra do coágulo);
efeitos benéficos sobre perfil lipídico e risco cardiovascular em alguns contextos.
Nem todos os estudos convergem nos mesmos resultados, mas o conjunto de evidências aponta que o alho e seus derivados têm potencial antitrombótico, principalmente quando utilizados em preparações concentradas — o que ajuda a explicar tanto o interesse cardiometabólico, quanto a preocupação com risco de sangramento em certos pacientes.
Alho e plaquetas: o impacto na hemostasia primária
A hemostasia primária depende da adesão e agregação plaquetária sobre o endotélio lesado. É justamente aí que entram os compostos do alho:
estudos in vitro e alguns ensaios clínicos mostram inibição da agregação plaquetária induzida por ADP, colágeno ou epinefrina;
o efeito parece ser dose-dependente e mais evidente com formas oleosas ou extratos padronizados de alho;
em voluntários saudáveis, parte dos estudos encontrou redução da agregação; outros, porém, não observaram mudanças significativas, evidenciando heterogeneidade entre preparações, doses e métodos de avaliação.
Na prática laboratorial, isso significa que um paciente pode apresentar:
contagem de plaquetas normal no hemograma,
mas função plaquetária parcialmente inibida, o que se manifesta em testes específicos de agregação ou como tendência a sangrar com mais facilidade em situações de desafio hemostático (cirurgias, traumas, punções).
Alho e exames de coagulação: o que a evidência mostra
Quando falamos de TP, INR e TTPa, é importante ser honesto com as evidências:
nem todos os estudos clínicos encontraram alterações significativas desses parâmetros após uso de alho, mesmo em forma de suplemento;
por outro lado, revisões sistemáticas e monografias regulatórias reconhecem o potencial antitrombótico e descrevem que o alho pode aumentar o tempo de sangramento e interagir com terapias anticoagulantes e antiplaquetárias, recomendando cautela.
Ou seja:
Não dá para afirmar que todo paciente que consome alho terá TP/INR alterados.
Mas é prudente reconhecer que existe potencial de interferência, principalmente em:
quem usa extratos concentrados ou cápsulas de alho;
quem está em terapia anticoagulante;
pacientes em pré-operatório com uso concomitante de produtos “naturais” voltados à circulação.
Para o laboratório, isso se traduz em um alerta: quando há INR inesperadamente alto, tendência a hematomas ou tempo de sangramento prolongado, vale questionar não só medicamentos prescritos, mas também fitoterápicos e suplementos à base de alho.
Alho + anticoagulantes: onde o risco realmente aumenta
O ponto de maior preocupação não é o alho culinário em si, mas a combinação de preparados concentrados de alho com anticoagulantes ou antiagregantes.
Revisões e relatórios de farmacovigilância apontam:
relatos de casos de sangramentos espontâneos ou pós-operatórios em pacientes que faziam uso intenso de extratos de alho, muitas vezes associados a outros fármacos;
documentos regulatórios europeus e fichas técnicas recomendam que preparações de alho sejam utilizadas com cautela em pacientes em uso de varfarina, heparinas ou antiagregantes (como AAS e clopidogrel), uma vez que podem aumentar o risco de sangramento, mesmo quando não alteram significativamente o INR.
O que se extrai disso para a prática clínica e laboratorial:
em consumo alimentar moderado, o alho dificilmente será problema isolado;
em forma de suplemento, especialmente em doses altas e uso crônico, o risco de somar efeito com medicamentos é real o suficiente para justificar orientação e registro em prontuário;
é razoável — e prudente — recomendar a suspensão de suplementos de alho alguns dias antes de cirurgias eletivas, conforme o protocolo de muitos serviços.
O alho causa anemia?
Não há evidência de que o alho, por si só, cause anemia.
O que pode acontecer é uma via indireta:
uso de alho (principalmente em suplemento) + anticoagulantes;
aumento discreto do risco de micro ou macrossangramentos (gastrointestinais, por exemplo);
ao longo do tempo, o paciente pode evoluir com anemia ferropriva secundária à perda crônica de sangue.
No laboratório, isso se traduz em:
hemoglobina e hematócrito reduzidos,
ferro sérico baixo e ferritina diminuída,
muitas vezes com RDW aumentado, sugerindo anemia ferropriva.
Mais uma vez, o alho não é o “vilão isolado”, mas pode atuar como fator que soma risco em pacientes com outros elementos predisponentes (medicações, doenças de base, idade avançada).
Interferência na coleta: quando o detalhe chama atenção
Na rotina do laboratório, alguns sinais podem levantar a suspeita de distúrbio funcional de plaquetas ou coagulação aumentada:
sangramento que demora mais para cessar após a punção;
formação de hematomas maiores do que o esperado no local da coleta;
paciente relata “qualquer batidinha virar roxo”.
Se esse paciente também:
usa varfarina, NOACs ou AAS,
relata o uso de suplementos naturais para “afinar o sangue”,
e consome produtos concentrados de alho, vale a pena registrar essa informação na ficha, orientar o paciente e correlacionar com os resultados de INR, TTPa, plaquetas e testes de função plaquetária, quando disponíveis.
O que a ciência diz hoje: síntese crítica
De forma resumida, o cenário atual de evidências é o seguinte:
In vitro e em modelos experimentais, o alho e seus compostos mostram efeito claro de inibir agregação plaquetária e aumentar fibrinólise.
Ensaios clínicos em humanos apontam tendência a efeito antiplaquetário, mas com resultados inconsistentes entre doses, apresentações e métodos.
O impacto sobre INR e tempos de coagulação é, em geral, pequeno ou ausente em estudos controlados, mas há relatos de sangramentos e recomendações oficiais de cautela em pacientes anticoagulados.
O consenso prático hoje é:
não demonizar o alho na dieta habitual,
ficar atento ao uso de suplementos concentrados,
e sempre investigar fitoterápicos em pacientes com alterações inexplicadas de coagulação ou sangramento.
Onde as análises clínicas entram nessa história
Para o laboratório, o alho é mais um exemplo de como alimentos e fitoterápicos podem interferir em resultados — às vezes de forma sutil, às vezes com impacto clínico real.
O setor de análises clínicas tem papel central em:
identificar alterações de coagulação (TP, INR, TTPa);
correlacionar achados com uso de medicações e suplementos;
orientar equipes médicas e de enfermagem sobre riscos de sangramento em pacientes específicos;
contribuir com protocolos de segurança cirúrgica e pré-operatória.
No fim das contas, falar de alho e coagulação é lembrar que natural não é sinônimo de neutro — e que a melhor forma de equilibrar tradição, alimentação e terapias é com ciência, diálogo e laboratório.
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Aprendemos que: natural também exige responsabilidade
O alho continua sendo um alimento de enorme valor nutricional e funcional. No entanto, como toda substância biologicamente ativa, ele pode causar efeitos indesejados quando usado em excesso ou de forma concentrada.
Seu impacto sobre a coagulação é real, documentado e clinicamente relevante em situações específicas. E é justamente por meio das análises clínicas que esse risco pode ser identificado, monitorado e prevenido.
Natural não significa inofensivo.
E a ciência é o que permite transformar alimento em cuidado seguro.
Autor: Ariéu Azevedo Moraes
Biomédico | Fundador da Pipeta e Pesquisa
Missão: Descomplicar as Análises Clínicas
Referências
Mollahosseini M. A systematic review of randomized controlled trials related to the effects of garlic supplementation on platelet aggregation. Phytother Res. 2022.
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Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fphar.2022.954938/full FrontiersHarenberg J et al. Effect of dried garlic on blood coagulation, fibrinolysis, platelet aggregation and serum cholesterol levels in patients with hyperlipoproteinemia. Atherosclerosis. 1988.
Resumo em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3240334/ ResearchGateMacan H et al. Pharmacodynamic interaction of warfarin with cranberry but not with garlic. Br J Clin Pharmacol. 2008.
Disponível em: https://bpspubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1038/bjp.2008.210 Wiley Online Library+1European Medicines Agency (EMA). Assessment report / European Union herbal monograph on Allium sativum L., bulbus. 2017.
Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/documents/herbal-report/final-assessment-report-allium-sativum-l-bulbus_en.pdf
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