Relação Albumina/Creatinina (RAC): quando pedir e interpretar

Entenda a Relação Albumina/Creatinina (RAC): quando pedir, por que “corrigir” a albumina pela creatinina em amostra isolada, como interpretar os pontos de corte e evitar falsos-positivos. Veja a integração com eTFG, estratificação de risco (A1–A3) e condutas segundo diretrizes atuais.

BIOQUÍMICA

Ariéu Azevedo Moraes

10/24/20257 min ler

RAC cálculo de albumina e creatinina
RAC cálculo de albumina e creatinina

Relação Albumina/Creatinina (RAC) na urina: por que o laboratório “corrige” a albumina pela creatinina e como isso muda o diagnóstico da doença renal

Introdução: a doença por trás do exame

A Doença Renal Crônica (DRC) é silenciosa, comum em pessoas com diabetes, hipertensão e risco cardiovascular, e muitas vezes começa com alterações microscópicas nos glomérulos antes da queda do eTFG. A albuminúria é um dos primeiros sinais de lesão renal e, por isso, medir a perda de albumina na urina virou peça-chave para detectar precocemente quem está em risco. A forma mais prática e robusta para triagem e monitoramento dessa perda é a Relação Albumina/Creatinina na urina (RAC), também chamada uACR. Diretrizes atuais (KDIGO e ADA) recomendam avaliar uACR junto ao eTFG, pois a combinação dos dois define risco e guia condutas.

Por que “corrigir” a albumina pela creatinina?

Medir só a concentração de albumina numa urina spot (amostra isolada) sofre com o efeito “água demais ou de menos”: se a urina estiver muito diluída (muita hidratação), a albumina “parece” menor; se estiver concentrada, “parece” maior. Para neutralizar essa variação, corrigimos pela creatinina urinária, uma substância excretada de maneira relativamente estável ao longo do dia. O resultado é um quociente expresso em mg de albumina por g de creatinina (mg/g), que se correlaciona melhor com a excreção diária e diminui o risco de erro por diluição/concentração da amostra. É por isso que, para triagem e seguimento, uACR é o método preferido em amostra isolada.

Resumo em uma linha: a RAC existe para compensar a variabilidade da urina spot e revelar a perda de albumina real, não “maquiada” pela hidratação.

Quando pedir a RAC (uACR)?

  • Diabetes tipo 1 e 2: rastreio regular (ao menos anual), pois a albuminúria sobe antes do eTFG cair e antecipa progressão e risco cardiovascular.

  • Hipertensão, doença cardiovascular, >60 anos, história familiar de DRC: avaliação periódica conforme risco global.

  • DRC conhecida: monitorar uACR + eTFG pelo menos 1×/ano, ajustando a frequência por risco/progressão.

  • Cenários específicos (ex.: gestação de alto risco): considerar particularidades na interpretação e manejo conjunto com equipe assistente.

As fontes enfatizam spot de primeira urina da manhã para reduzir variabilidade e melhorar a concordância com a excreção diária.

Como coletar e preparar a amostra

  • Amostra: urina spot, preferencialmente a primeira da manhã.

  • Preparo: evitar exercício vigoroso 24–48 h antes; adiar se houver febre, infecção urinária ativa ou sangramento menstrual, pois elevam a albumina transitoriamente.

  • Jejum: não obrigatório na maioria dos métodos; siga o POP do laboratório.

  • Transporte/estabilidade: conforme método validado e POP interno.

Unidades, pontos de corte e categorias A1–A3

A RAC é expressa em mg/g. Os pontos de corte consagrados por diretrizes grandes são:

  • < 30 mg/g: A1 — normal a levemente aumentada;

  • 30–300 mg/g: A2 — “moderadamente aumentada” (antiga microalbuminúria);

  • > 300 mg/g: A3 — “severamente aumentada” (antiga macroalbuminúria).

Confirmação: alterações devem ser confirmadas em 2 de 3 amostras ao longo de 3–6 meses (fora de condições transitórias), reduzindo o impacto da variabilidade biológica.

RAC e a matriz de risco KDIGO: interpretando com eTFG

A KDIGO combina eTFG (G1–G5) e albuminúria (A1–A3) num “mapa de calor” que estima risco de progressão de DRC, eventos cardiovasculares e mortalidade. Um paciente G1A2 (eTFG normal, uACR 30–300 mg/g) já tem risco acima de G1A1, o que muda monitorização e metas terapêuticas. Assim, uACR não é detalhe: ela reclassifica risco e orienta decisões clínicas (pressão arterial, terapias renoprotetoras, frequência de controle).

Em diabetes, a uACR é marcador prognóstico para eventos renais e cardiovasculares; as Normas ADA 2025 reforçam rastreio, confirmação de anormalidades e metas (p.ex., reduzir albuminúria ≥30% quando ≥300 mg/g para desacelerar a progressão).

Por que RAC e não urina de 24 horas?

A coleta de 24 h mede a excreção total, porém é logisticamente difícil (coleta incompleta, perdas) e pouco prática para rastreamento em larga escala. A RAC em amostra única se correlaciona bem com a excreção diária e simplifica a rotina, sendo recomendada como primeira escolha para triagem/seguimento; a urina de 24 h fica para situações específicas (discordâncias, perguntas clínicas pontuais).

Como interpretar na prática (passo a passo)

  1. Contexto clínico primeiro: diabetes, hipertensão, idade, DCV, histórico familiar.

  2. Confirme alterações: repita uACR se A2/A3 (2/3 amostras em 3–6 meses) ou antes se valores muito altos/associados a outros achados.

  3. Classifique G-A: combine eTFG + uACR (ex.: G2A2) para estratificar risco e definir intervalo de seguimento.

  4. Condutas: controle pressórico, avaliação de IECA/BRA quando há albuminúria e pressão arterial permite, e terapias com benefício cardiorrenal conforme diretriz e elegibilidade.

Fatores que elevam a uACR transitoriamente (evite falsos-positivos)

  • Exercício vigoroso recente

  • Infecção urinária

  • Febre / estados inflamatórios agudos

  • Hiperglicemia aguda

  • Menstruação

  • Desidratação importante

Nesses cenários, postergue a coleta e/ou repita depois da resolução do fator.

Limitações da “correção” pela creatinina: onde ter cautela

A creatinina urinária não é igual para todos: massa muscular, sexo, idade e dieta influenciam a excreção. Pessoas com sarcopenia podem ter creatinina muito baixa e a RAC pode superestimar a albuminúria; atletas/muito musculosos podem ter o inverso. Por isso, a primeira urina da manhã, a confirmação seriada e o contexto clínico são indispensáveis.

Crianças, adolescentes e gestantes: notas rápidas

  • Pediatria: a avaliação de albuminúria/proteinúria e eTFG deve ser individualizada por idade/estadiamento e, na DRC, realizada regularmente (mínimo anual), conforme risco.

  • Gestação: alterações hemodinâmicas e condições como pré-eclâmpsia exigem interpretação obstétrico-nefrológica; siga protocolos da assistência.

Periodicidade de monitorização: com que frequência repetir?

  • DM/HAS: anual, podendo ser semestral/trimestral se risco alto ou progressão.

  • DRC estabelecida: ≥1×/ano, aumentando a frequência se a uACR sobe de categoria ou se o eTFG piora. Algumas referências lembram que mudanças relevantes (p.ex., dobrar a uACR) ultrapassam a variabilidade e pedem reavaliação.

  • NICE recomenda individualizar a frequência, avaliando se a mudança da uACR muda conduta.

Perguntas frequentes (FAQ)

Precisa ser a primeira urina da manhã?
Não é obrigatório, mas preferível para reduzir variabilidade e melhorar a concordância com a excreção diária.

Jejum é necessário?
Não. O mais importante é evitar exercício e condições agudas que elevam albumina.

RAC substitui a urina de 24 horas?
Para triagem/seguimento rotineiros, sim na maior parte dos casos; a 24 h fica para discordâncias ou perguntas específicas.

Quando encaminhar ao especialista?
Depende da combinação G–A e de achados associados (hematúria, piora rápida, ACR muito alta). Protocolos citam encaminhar quando a albuminúria é persistentemente elevada e/ou há outros marcadores de lesão. Siga fluxos locais.

Boas práticas para o laboratório (qualidade analítica)

  • Padronização da coleta: preferir manhã; treinar equipe para orientar evitar exercício e coletar fora de infecção/menstruação.

  • Metrologia e validação: usar métodos validados para albumina e creatinina urinárias e reportar mg/g; garantir rastreabilidade e comparabilidade longitudinal.

  • CQI/CEE: manter controle interno e externo; como decisões são baseadas em mudanças de categoria, a estabilidade metrológica importa.

  • Laudo claro: destacar A1/A2/A3, orientar confirmação quando aplicável e listar interferentes comuns.

  • POCT/triagem ampliada: recomendações recentes discutem desempenho mínimo para detectar uACR ≥30 mg/g em ponto de cuidado; se adotar, faça avaliação operacional.

Modelo prático de laudo

  • Relação Albumina/Creatinina (uACR): 85 mg/g (A2: moderadamente aumentada).

  • Amostra: urina spot (primeira da manhã).

  • Observação: repetir para confirmar (2 de 3 amostras em 3–6 meses), avaliar eTFG, excluir interferentes (ex.: exercício intenso, infecção urinária). Classificar risco G–A e ajustar monitorização.

Conclusão: um quociente simples que antecipa decisões importantes

A RAC (uACR) sintetiza uma ideia poderosa: corrigir a albumina pela creatinina para enxergar a lesão glomerular sem o ruído da diluição. Pela simplicidade, reprodutibilidade e valor prognóstico, tornou-se padrão para triagem e seguimento da DRC, especialmente em diabetes e hipertensão. Para o laboratório, investir em coleta padronizada, qualidade analítica e laudos explicativos entrega valor direto à clínica: detecção mais precoce, estratificação de risco coerente e oportunidade de intervenções quando o benefício é maior.

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Referências

  • KDIGO 2024 – Diretriz DRC (executivo): triagem com urina albumina + eTFG, confirmação de achados e matriz G–A. (KDIGO)

  • KDIGO 2024 – Guideline completa (PDF): pontos de corte A1/A2/A3 e “heat map” de risco. (KDIGO)

  • ADA 2025 – DRC e manejo: definições de albuminúria, rastreio em diabetes e metas de redução da uACR. (Diabetes Journals)

  • AAFP – Detecção e avaliação de DRC: preferência por spot da manhã na medição de albuminúria. (AAFP)

  • NICE NG203 – Avaliação/monitorização de DRC: frequência individualizada de ACR e integração com eTFG. (NICE)

  • National Kidney Foundation – uACR (público e profissionais): explicações de preparo, interpretação e fatores transitórios. (National Kidney Foundation)

  • KDOQI/Nephrology commentary 2025: comentários práticos sobre a diretriz KDIGO 2024. (KDIGO)

Box de bolso

  • Exame: Relação Albumina/Creatinina

  • Amostra: urina spot (preferir 1ª da manhã)

  • Unidade: mg/g

  • Pontos de corte: <30 (A1) | 30–300 (A2) | >300 (A3)

  • Confirmar: 2 de 3 amostras em 3–6 meses

  • Interpretar com eTFG: classifique G–A (KDIGO) para estratificar risco e guiar condutas.

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