Quando o sangue engana: interferências pré-analíticas nos exames hematológicos

Entenda o que são interferências pré-analíticas nos exames hematológicos, quais erros na coleta e transporte alteram o hemograma e como evitar resultados falsos e diagnósticos equivocados.

COLETA E PREPAROHEMATOLOGIA

Ariéu Azevedo Moraes

6/15/20254 min ler

Biomédico analisando indicadores de exames e possíveis interferências
Biomédico analisando indicadores de exames e possíveis interferências

Nem sempre é o paciente que erra, às vezes é o sangue que engana.


Um tubo mal identificado, um garrote mantido por tempo demais, uma amostra hemolisada ou refrigerada de forma inadequada: pequenos deslizes que, somados, podem mudar completamente o resultado de um exame.

Nos bastidores do laboratório clínico, antes mesmo da análise automatizada começar, existe uma fase silenciosa e crítica — a fase pré-analítica. É nela que ocorrem mais de 60% dos erros laboratoriais, segundo a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica (SBPC).

Essas falhas, chamadas de interferências pré-analíticas, distorcem parâmetros do hemograma, da contagem de plaquetas e até dos testes de coagulação, levando a interpretações equivocadas. Em outras palavras: um sangue coletado de forma incorreta pode contar uma história que o corpo nunca viveu.

Neste artigo, você vai entender o que são as interferências pré-analíticas nos exames hematológicos, os erros mais comuns e — o mais importante — como preveni-los para garantir resultados confiáveis e diagnósticos seguros.

A fase pré-analítica: onde tudo começa (e pode dar errado)

A fase pré-analítica compreende todas as etapas entre a solicitação médica e o início do processamento da amostra no laboratório:

  • Preparação do paciente

  • Coleta do sangue

  • Tipo de tubo e anticoagulante utilizados

  • Rotulagem da amostra

  • Armazenamento e transporte

Um simples erro em qualquer desses pontos pode gerar alterações artificiais nos resultados, levando a diagnósticos incorretos, tratamentos desnecessários ou até à repetição de exames — algo que sobrecarrega o sistema e desgasta o paciente.

Amostras bem coletadas são a base de qualquer resultado confiável. E em hematologia, onde as contagens celulares são extremamente sensíveis, esse cuidado é ainda mais crucial.

Principais interferências pré-analíticas nos exames hematológicos

1. Hemólise

A hemólise ocorre quando há rompimento dos glóbulos vermelhos, liberando hemoglobina no plasma. Pode ser causada por:

  • Aspiração muito vigorosa durante a coleta

  • Uso de agulhas muito finas

  • Agitação excessiva do tubo após a coleta

Consequências:

  • Alterações na contagem de hemácias e hematócrito

  • Liberação de potássio (falso aumento)

  • Interferência em índices hematimétricos (VCM, HCM)

2. Coleta em tubo inadequado ou vencido

Cada exame hematológico requer um tipo específico de tubo, com ou sem anticoagulante. O mais comum é o EDTA (ácido etilenodiamino tetra-acético) para o hemograma.

Problemas comuns:

  • Uso de tubo sem EDTA para exames hematológicos

  • Tubo com anticoagulante vencido ou mal homogenizado

Consequências:

  • Formação de coágulos

  • Aglutinação de plaquetas

  • Pseudotrombocitopenia (falsamente baixa contagem de plaquetas)

3. Tempo e temperatura de transporte

O ideal é que a amostra chegue ao laboratório em até 2 horas após a coleta, especialmente em regiões com altas temperaturas.

Impactos do atraso ou armazenamento inadequado:

  • Degeneração celular

  • Variações na contagem de leucócitos

  • Alterações morfológicas nos esfregaços sanguíneos

4. Ordem de coleta e contaminação cruzada

A sequência incorreta de tubos pode causar contaminação por anticoagulantes ou aditivos de tubos anteriores. Um tubo com citrato, por exemplo, pode diluir a amostra seguinte se a ordem não for respeitada.

Recomendação da ordem de coleta (simplificada):

  1. Tubo sem aditivo (soro)

  2. Citrato (coagulação)

  3. EDTA (hematologia)

  4. Fluoreto (glicose)

Essa ordem é padronizada internacionalmente e deve ser seguida rigorosamente para garantir a integridade das amostras.

Casos clínicos e situações reais de interferência

Caso 1 – Pseudotrombocitopenia:
Paciente com queixa de sangramentos leves. Exame mostra plaquetas: 45.000/mm³ (baixo). Nova coleta com citrato revela: 210.000/mm³ (normal). Diagnóstico: aglutininas frias induzidas pelo EDTA, causando agregação de plaquetas. Evitou-se um tratamento desnecessário para púrpura trombocitopênica idiopática (PTI).

Caso 2 – Hemólise por coleta difícil:
Paciente idoso, coleta difícil por acesso venoso colapsado. Recoleta realizada com seringa e agulha fina. Resultado: hemólise acentuada. Exames comprometidos. Solicitada nova amostra, causando estresse ao paciente e atraso no atendimento.

Como evitar as interferências pré-analíticas em hematologia

A prevenção dessas falhas exige treinamento, protocolos claros e responsabilidade compartilhada entre os profissionais de saúde.

Boas práticas na coleta de sangue:

  • Verificar a identidade do paciente antes da coleta

  • Escolher agulha e tubo adequados para o exame solicitado

  • Homogeneizar os tubos com anticoagulante suavemente (inversão 8 a 10 vezes)

  • Evitar garroteamento prolongado (>1 minuto)

  • Transportar as amostras em temperatura ambiente, protegidas da luz solar direta

Treinamento contínuo:

  • Capacitação de coletadores, técnicos e biomédicos

  • Atualização de protocolos conforme novas recomendações

  • Discussões de casos com a equipe

Controle interno:

  • Avaliação rotineira de amostras inadequadas

  • Monitoramento dos índices de recoleta

  • Análise das causas de não conformidades

O erro pré-analítico não é apenas um detalhe técnico — ele afeta diretamente o cuidado ao paciente.

O papel do laboratório e do biomédico

Cabe ao biomédico, técnico ou analista não apenas realizar os exames, mas avaliar criticamente a amostra antes de processá-la. Quando há indícios de interferência (hemólise visível, coágulos, baixa contagem com presença de agregados), o profissional deve:

  • Reter a amostra

  • Comunicar a coleta

  • Sugerir nova coleta ou outro tipo de tubo

Além disso, investir em educação permanente é fundamental para manter o padrão de qualidade e reduzir os índices de erro.

Finalizamos falando que:

As interferências pré-analíticas nos exames hematológicos são mais comuns do que se imagina — e mais perigosas do que parecem. Um tubo com hemólise, uma ordem de coleta trocada ou um transporte inadequado podem transformar um resultado confiável em uma armadilha diagnóstica.

Garantir a qualidade da fase pré-analítica é uma das formas mais efetivas de valorizar o trabalho do laboratório, proteger o paciente e assegurar diagnósticos verdadeiramente confiáveis.

A próxima vez que você ver um hemograma com dados incoerentes, lembre-se: talvez o problema não esteja no sangue — mas na forma como ele foi tratado.

Texto elaborado por Biomédico Ariéu Azevedo Moraes, especialista em Gestão Laboratorial.

Referências

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